Para descontrair um pouco, em tempos tão difíceis...
esta deliciosa crônica de Antonio Prata.

É pavê...

Antonio Prata

Tem gente que se irrita, que suspira e vira os olhos como um filósofo vendo Chapolin ou um cientista lendo o horóscopo, mas eu não. Eu sorrio feliz e contente toda vez que escuto alguém perguntar, diante de um pavê, com a segurança do primeiro ser humano tocado pela luz da inspiração: "É pavê ou pacomê?!". Que coragem.
Vivemos sob a égide do grande Deus Photoshop. Começamos tirando as celulites das bundas, passamos a cortar as estrias dos discursos e hoje removemos manchinha por manchinha de nossas facebúquicas personalidades. Nesta era da performance, em que cada ideia é cuidadosamente escanhoada antes de ser posta no mundo, em que cada julgamento é miligramicamente pesado para se avaliar os seus efeitos – seus likes, deslikes e retuítes –, enfim, nestes tempos bicudos em que a canalhice é perdoada, mas a ingenuidade não, o cidadão me sai com essa: "É pavê ou pacomê?!". Que desprendimento.
Trata-se, evidentemente, de um espírito superior. Um homem acima da moral de sua época, liberto das amarras do século, desplugado dos HDMIs e USBs do Zeitgeist, um homem que não tem vergonha de baixar a guarda e mostrar-se desprotegido, como aqueles peladões que, antigamente, surgiam correndo no meio de um jogo de futebol.
Como eram felizes os peladões de antanho, livres e despropositados, ziguezagueando entre jogadores perplexos, fugindo de policiais furibundos. Agora, até os peladões têm objetivos, estratégias, método. Desnuda-se pelo fim da corrupção, contra a pesca do atum, por mais ciclovias na cidade. Tudo bem, é sempre melhor ver ativistas em pelo (ou sem pelo nenhum) defendendo uma causa nobre do que ruralistas vestidos (felizmente) atacando as leis ambientais.
O ponto é que, anarquistas ou sojicultores, despidos ou de burca, fomos todos cooptados pela cartilha do cálculo. No século 21, até adestrador de cachorro tem assessor de imprensa, pipoqueiro faz coaching, refém de assalto a banco imagina, com uma arma na cabeça, como vai capitalizar a experiência ao sair dali: palestra motivacional? Biografia? Autoajuda? Só nosso amigo do pavê não pensa nos efeitos e nas consequências de seu ato: simplesmente segue o impulso. É o último romântico lutando contra as catracas do bom [sic] gosto, da etiqueta, da inteligência.
Como superestimamos a inteligência, não? Goebbels, Stalin, Kalashnikov e o inventor do telemarketing eram todos inteligentíssimos e o mundo passaria bem melhor se em seus lugares tivéssemos um punhado de figuras capazes de desafiar a família, os amigos, os chefes e os colegas de trabalho, sem medo do ridículo ou de retaliações, em nome de uma piada (dita) infame.
"Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê', pois verão a face de Deus", diria Jesus, na Galileia, se na Galileia já houvesse pavê. Não havia – mal havia pacomê –, de modo que os bravos iconoclastas seguem na luta sem o beneplácito de Deus, enfrentando com a cara e a coragem o desdém da sociedade. Não desanimem, irmãos: saibam que, se não têm o testemunho de Mateus, contam ao menos com o apoio deste modesto cronista, sempre disposto a responder, com a colher em riste e a fé no futuro: "Pacomê!".
Bem-aventurados os puros de coração.

Antonio Prata - Trinta e poucos - Companhia das Letras, 2016

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