Leituras da Pandemia

Minha Primeira Vez - Luiz Ruffato



Neste texto, vou comentar o livro de crônicas Minha primeira vez, de Luiz Ruffato. O volume faz parte da linda coleção Arte da Crônica, da Arquipélago Editorial, de Porto Alegre. Coleção da qual comentarei outros títulos mais adiante.
Bem, mas antes de falarmos do livro em si, preciso explicar minha relação com este gênero tão brasileiro. É uma das minhas idiossincrasias. Não costumo ler crônica em jornal ou na internet. Nem mesmo de autora de que gosto. Quase nunca. Digo quase porque às vezes alguma amiga querida me enfia uma crônica Whats ou Face abaixo.
Mais do que não ler, eu a evito, fujo dela, como se foge daquele conhecido com quem cruzamos constrangidos na rua. Aquela pessoa que conhecemos, mas não temos a intimidade confortável para entabular uma conversa, nem o distanciamento necessário para apenas acenar com a cabeça. Ao não sabermos a reação adequada, cruzamos a rua, fingimos ver uma mensagem no celular ou entramos na primeira porta aberta.
É mais ou menos essa minha relação com a crônica diária, aquela fresquinha, recém publicada. Essa característica da crônica, de ser um texto visceralmente ligado ao jornalismo, ao dia a dia, me provoca certa aversão, um verdadeiro mal-estar.
Tudo muda quando elas são publicadas em livro. Além do fetiche do objeto, que sempre me encantou, a crônica republicada me acalma. Está ali um texto que superou a fugacidade do jornalismo, alcançou a perenidade da literatura. Sei que essa é uma ideia clichê. Mas fazer o quê?
O que me conforta é saber – ou melhor, acreditar – que a crônica publicada em livro passou, em primeiro lugar, pelo crivo da própria autora. Espera-se sempre certa autocrítica por parte daquele escritor, que ele saiba selecionar seus textos: 'isso é bom, isso vai pro lixo', e assim por diante.
Daí o fato de que muitas crônicas de Machado de Assis, por mais que queiram os estudiosos, não tenham valor para além de seu estilo refinado e de sua inteligente ironia. Seu conteúdo e reflexões pouco ou nada nos dizem respeito hoje em dia. O autor de Dom Casmurro, que eu saiba, não teve grande preocupação em reunir em livro suas crônicas. Por algo será.
Mas, voltando às crônicas de Luiz Ruffato, elas são boas não só porque passaram pelo crivo do autor e, suponho, também do editor. Elas têm a rara qualidade de se libertar do fato comezinho e se alçar a níveis mais elevados do humano, a camadas mais profundas do ser e estar neste mundo.
Ruffato segue na linha do lirismo tão bem desenvolvido por Rubem Braga, considerado o mestre do gênero. Seus textos mesclam compromisso social, reflexão, delicadeza e denúncia. São tão envolventes que me contive para não terminar o livro muito depressa. Queria saboreá-lo.
Minha primeira vez tem preciosidades, trechos de delicado lirismo. “As primeiras palavras reveladas sequestraram meu espírito e meu corpo caminhou sonâmbulo negaceando os postes, buracos e pessoas, buscando os coágulos de luz que, rompendo a copa das árvores, drapejavam a calçada malconservada da Avenida Rio Branco. (...) Eu já acumulava 18 anos de uma irremediável melancolia”.
Ou então, estes: “E mergulhei na areia movediça das lembranças. (...) Compreendi que não há suavidade no curso do tempo (...) numa tarde em que dezembro invadiu marcial o espelho do meu quarto (...) coleciono angústias, guardadas com cuidado em gavetas e armários”.
Ruffato é um dos melhores escritores brasileiros da atualidade. Devo o primeiro contato com sua obra a Jaqueline Lemos, que me presenteou Eles eram muitos cavalos em abril de 2002. Desde então, sou fascinado pela escrita ao mesmo tempo poética e incisiva desse mineiro de Cataguases.
Claro que, pelo meu perfil, acabo abraçando aquelas crônicas mais melancólicas. Também tenho a mania – quase obsessão – de marcar no livro as crônicas, ou contos ou poemas, de que mais gosto. Apresento-as aqui, menos pelo prazer do inventário, e mais como estímulo a futuras leitoras.
A inveja trata de uma coisa tão simples, mas ao mesmo tempo tão mágica, que é a primeira ida ao cinema. Mais cem anos de solidão fala sobre o início da paixão pela literatura. Minha primeira vez relata a dura passagem do autor pelo Colégio Cataguases, um texto que, além da melancolia e da sutil dor da solidão, consegue ser divertido, quase engraçado.
Primeira lembrança revela os artifícios da memória, com fino humor. Q. está morrendo é tão comovedora, tão delicada e tão dolorosa. Rodeiro, meu amor expõe os silêncios da história da imigração italiana, mas também das mudanças do tempo, da voragem do capitalismo. Sementes de laranja-lima descortina o detalhe mais pungente da obra de José Mauro de Vasconcelos. Seu Sebastião, meu pai é uma linda crônica-perfil, uma homenagem terna.
Que tal se você também selecionar as suas crônicas preferidas de Luiz Ruffato e trocarmos uma ideia?
E deixo aqui um dos trechos que mais me comoveram, da crônica Somos gelo desprendidos de um iceberg:
Quando voltei para casa naquele dia, bêbado de tristeza, minha mãe, como sempre acordada, levantou-se e perguntou se eu queria que preparasse algo para comer. Respondi que não e falei: "Mãe, vou embora daqui a seis dias. Vou procurar trabalho em Juiz de Fora". Ela, depositando na parede descascada os olhos dilacerados, comentou: "Vai, sim, meu amor, você tem que ir". E saiu para o quintal. Fui atrás dela e não a identifiquei de imediato, mergulhada na noite sem lua. Mas um relâmpago, distante, iluminou debilmente sua silhueta magra. A mesma silhueta que de súbito ardeu minha memória imersa na escuridão do ônibus.

Alex Criado

 

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