Leituras da pandemia

A Resistência - Julián Fuks

Parece um tolo jogo de palavras, mas resisti muito a ler A Resistência, de Julián Fuks. Edilene já tinha comentado algo a respeito do tema: a história do irmão adotivo do autor. Creio que uma reticência dela em relação ao tratamento dado pelo autor criou essa minha ‘demora’ em ler o romance. De qualquer forma, ele veio junto na bagagem e, finalmente, o enfrentei.
Julián Fuks foi considerado um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros pela revista literária britânica Granta. Sei que temos que ter cuidado com todo tipo de lista, principalmente aquelas que elencam “os melhores”. Fuks também já foi indicado aos principais prêmios literários no Brasil. Prêmios também são questionáveis. Mas, de fato, Julián Fuks é um baita escritor.
Lá pelos anos 1980, um colega entrou aborrecido na sala do jornal-laboratório da ECA/USP e disparou: “aqui todo mundo é frustrado!”. Diante do espanto geral, completou: “o que a gente queria mesmo era ser escritor, mas como não temos competência, decidimos ser jornalistas”. Era uma época em que o adolescente escolhia a carreira porque escrevia bem. E também porque queria “mudar o mundo”. Para melhor, é claro.
Então, creio que esse colega tinha lá sua dose de razão. Anos depois, ele próprio abandonou o jornalismo e se tornou diplomata de carreira. Deve estar em algum lugar do mundo, representando o triste Brasil e o seu desgoverno, que jogou no lixo mais de um século da rica tradição diplomática brasileira. No plano internacional, o genocida paulista está transformando o Brasil numa Nicarágua.
Mas chega de divagações. O fato é que, contrariando essa suposta frustração atávica dos alunos de jornalismo, Julián Fuks mostrou que dos bancos da ECA também saem grandes escritores. Sim, ele estudou nas mesmas salas de aula e participou do mesmo jornal-laboratório duas décadas depois. E hoje escreve.
Seu romance, que pode ser classificado como autoficção (ver resenha número 4), narra a história de uma família portenha exilada no Brasil durante a ditadura militar argentina. O grupo é composto pelo casal e três filhos, sendo que o primogênito foi adotado em circunstâncias nebulosas.
A história é contada em primeira pessoa, na voz do irmão caçula, o que provoca aquela intencional confusão entre autor e narrador. O relato se desloca continuamente entre o presente, em que o narrador busca desvendar a história do irmão, e o passado. Porém, os fatos antigos nos são apresentados em fragmentos: o jovem casal de médicos que busca sobreviver sob o terror na Argentina; a prisão e a tortura; as tentativas frustradas de gerar um filho e a adoção; o exílio e os primeiros anos de Brasil; a infância do narrador e de seus irmãos em São Paulo; a adolescência dos três, quando se produz o lento, mas profundo distanciamento do filho adotivo.
Vamos tendo acesso a esses fragmentos ao mesmo tempo em que mergulhamos nas indagações do narrador-personagem: “uma culminação de caminhos pretéritos, uma entre muitas culminações dessas vidas complexas que se entrelaçam e se permeiam com um passado coletivo, com a marcha de uma época, com as tortuosas fissuras de um tempo.
Uma das grandes qualidades de A Resistência é entrelaçar os fatos às reflexões. Aí, talvez, também resida a minha contrariedade pessoal com o livro. Como pai adotivo, me incomoda a forma como Fuks aborda a questão. Tenho a impressão de que o seu narrador hiper dimensiona a origem adotiva de seu irmão. Mas suas colocações são tão densas que acabo por me questionar acerca da minha própria visão.
Porque as divagações do narrador são sensíveis e, sobretudo, inteligentes: não reduzem, não simplificam e não fecham a questão; sempre há outra possibilidade. “Exagerávamos, é evidente, como ainda exagero agora, ciente de que as palavras distorcem, de que as perguntas também afirmam.” Isso enriquece o romance. Por outro lado, a densidade narrativa é contrabalanceada com capítulos curtos, duas ou três páginas.
Embora, a escusa do enredo seja desvendar a história de adoção do primogênito e os traumas que isso implicou, na verdade, todo o livro é uma indagação sobre a relação ente os irmãos: o amor, a admiração, o companheirismo, o distanciamento, os silêncios, a culpa. As reflexões do narrador são permeadas de dor e dúvida, mas também de lirismo:
Sei que escrevo meu fracasso. Vacilo entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição fabular, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar.
Na arte da fabulação, Julián Fuks é genial. O autor demonstra um exímio domínio da linguagem, cada palavra parece que se encaixa com perfeição – e só ela – na descrição de um espaço, na reflexão sobre um acontecimento, seja familiar ou histórico, ou na construção de uma cena cotidiana.
O texto de Fuks, claro, nunca se restringe ao descrito. A elaboração sofisticada de cada frase, sem torná-la hermética, abre os sentidos para novas significações. É o tipo de texto que nos convida a pensar, sem ser aborrecido. Ao contrário, Fuks nos envolve numa sutil cumplicidade: “escrever sobre a família e refletir tanto sobre ela não equivale a vivê-la, a partilhar sua rotina, a habitar seu presente”.
É com este sentimento de graça que terminamos a leitura de A Resistência. A sensação de termos partilhado de uma obra sofisticada e comovedora.

Alex Criado

 

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