Leituras da pandemia

Divórcio - Ricardo Lísias

Finalmente li o livro Divórcio, de Ricardo Lísias. Já tinha ouvido falar muito deste romance, mas confesso que tenho certa resistência em ler aquilo que todos comentam. Aí, surgiu uma promoção e acabei comprando. Não só pela oferta, claro, já gostava do autor.
Li seu primeiro livro em 2015, quando preparava um curso de jornalismo cultural. Comecei pelas narrativas curtas de Concentração e outros contos. Foi aí que tomei contato com aquilo que a crítica literária vinha chamando de autoficção. O conceito é impreciso e um tanto dúbio. Dizer que se trata do uso de experiências pessoais no texto de ficção é tão amplo que colocaria boa parte da produção literária nesse balaio.
Para o que nos interessa aqui, vou dizer que autoficção é a mistura intencionalmente confusa entre a história do autor e a narrativa construída por ele. No Brasil, vários jovens escritores têm seguido essa linha: Michel Laub, Tatiana Salem Levy, Julián Fuks e João Paulo Cuenca, por exemplo. Mas creio que, entre eles, Ricardo Lísias é o mestre do artifício.
Em boa parte de sua obra, o protagonista se chama Ricardo Lísias, o enredo é narrado em primeira pessoa, em tom quase confessional. E o autor insere dados de sua própria trajetória na biografia do narrador-personagem. Tudo isso deixa o leitor com a forte impressão de que está lendo um relato autobiográfico. Mas não é.
Porque, ao mesmo tempo, o escritor inclui informações absolutamente disparatadas. Em um conto, por exemplo, Ricardo Lísias foi campeão de xadrez aos 13 anos. O autor diz em entrevistas que é um jogador canhestro. Em seu romance A vista particular, Ricardo Lísias é um artista plástico que ganha uma fortuna. Em Divórcio, o bisavô do protagonista é um libanês que construiu um patrimônio de centenas de imóveis em São Paulo. Na vida real, foi um imigrante como outro qualquer.
Ricardo Lísias já havia utilizado a técnica em alguns dos contos de Concentração e também no romance Céu de suicidas (2012). Lá, o personagem Ricardo Lísias enfrenta um colapso emocional diante do suicídio de seu melhor amigo. De fato, o escritor Lísias havia perdido um grande amigo, mas o romance trata da culpa, da incapacidade de escuta, do sofrimento e da solidão.
Já em Divórcio, o evento traumático que desencadeia toda a narrativa é a separação entre o narrador-personagem Ricardo Lísias e sua esposa, com quem tinha se casado havia apenas quatro meses. O escritor também tinha vivido uma separação intempestiva.
Na história, ao buscar uma conta que deveria ser paga, o personagem a encontra no meio do diário da mulher. Ao abri-lo, se depara com referências bem pouco elogiosas a seu respeito. Não resiste. Ao cabo de quase uma hora lê o diário inteiro. E se lança em um abismo.
A esposa do personagem Ricardo é uma famosa jornalista cultural, que tinha feito a cobertura do Festival de Cannes, onde o trai com um membro do júri. Este é o pretexto para que o personagem comece a escrever um romance sobre a separação. Aqui, novamente, nos deparamos com a sensação autobiográfica.
A crise conjugal também faz com que o narrador discuta e questione a atuação de alguns jornalistas, sobretudo, da grande imprensa. E aí reside o mais interessante da obra, do meu ponto de vista.
A partir da dupla traição: a infidelidade conjugal e a deslealdade do diário, Ricardo questiona a relação promíscua que boa parte dos jornalistas mantém com suas fontes. E também o uso indiscriminado e hipócrita do “off”, isto é, do artifício jornalístico de veicular uma informação sem citar a fonte.
Não posso concordar com essa história de fontes anônimas. Richard Nixon nunca teria perdido o cargo se não fosse uma delas. Mas o Garganta Profunda serviu para que os jornalistas fossem atrás de provas materiais. Aqui no Brasil, apenas um off já é suficiente. Um dedo-duro fala alguma coisa e no dia seguinte uma notícia é publicada.
Hoje, depois que o jornalismo dominante se transformou em assessoria de imprensa da Lava-Jato e ajudou a encaminhar o país para o fascismo, esta acusação do narrador-personagem parece até gentil.
Mas o autor vai além. É a partir da crítica aguda aos jornalistas – “pessoas que querem subir na empresa” – na figura de sua ex-mulher, que Ricardo constrói o retrato mais amplo e corrosivo de uma classe social: “existe um estrato social no Brasil, amplo e enraizado em espaços que vão do jornalismo ao direito, passando por setores da produção cultural, que referenda o antigo diagnóstico de sermos um país de gente corrupta, mentirosa, covarde e hipócrita”.
Aqui aparece outro traço de Ricardo Lísias: o tom profundamente político de sua obra. “Acredito que a arte deva desafiar qualquer tipo de poder”, diz o personagem, mas também o autor. Em suas obras encontramos uma visão crítica do mundo acadêmico, do universo artístico, do jornalismo, da política e da economia.
Para terminar, resta responder uma questão: por que o uso da autoficção, que pode confundir o leitor sobre o que é ou não verdade? Não tenho uma resposta clara para isso, e nem sei se o uso desse recurso não irá se desgastar com o tempo. Mas me pergunto se não estaria aí a questão que permeia a história da literatura, a fronteira entre o real e a ficção.
Para mim, o uso da autoficção supera a permanente tentativa dos escritores de se afastarem de sua realidade pessoal para construir outra realidade. A autoficção também faz o leitor mergulhar no relato, como se tudo aquilo fosse verdadeiro, uma ambição de toda narrativa literária. E nisso Ricardo Lísias é craque.

Alex Criado

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog