Leituras da Pandemia

O filho de Machado de Assis - Luiz Vilela

Ao embarcar para a Espanha, um dos livros que selecionei para nos acompanhar foi um pequeno volume do grande contista Luiz Vilela. No caso, tratava-se da novela O filho de Machado de Assis. Para quem não sabe, a novela é um gênero a meio caminho entre o conto e o romance. É como se fosse um conto distendido, longo, menos sintético. Mas não chega a ter a estrutura elaborada de um romance.
Tomei contato com Luiz Vilela no início dos anos 1990, quando uma colega da ECA, hoje professora da UnB, me falou encantada de dois escritores mineiros, Ivan Ângelo e Luiz Vilela. Insistiu em que eu tinha que conhecê-los. A paixão dela era tanta que não tive dúvida. Na primeira oportunidade fui atrás da obra dos dois. De Luiz Vilela, li tudo o que encontrei pela frente, o que significava à época todos os seus livros. E vi que ela tinha razão. Eram contos incisivos, tocantes e surpreendentes. Não à toa, o autor, com só 24 anos, tinha vencido o Prêmio Nacional de Ficção por seu primeiro livro, Tremor de terra.
Digo tudo isso para justificar por que O filho de Machado de Assis foi um dos raros exemplares selecionados para a empreitada transoceânica. O volume de capa elegante passou por todos os cortes e peneiras. Veio.
Ao lê-lo, contudo, não é que eu tenha tido uma decepção. Mais certo dizer que o livro me provocou profunda irritação, senão repulsa. Vejamos.
A novela trata da descoberta de um suposto filho daquele que é considerado o maior romancista brasileiro. O autor da descoberta é o vetusto professor Simão (pobre referência a Simão Bacamarte, protagonista de O Alienista). Para além desse argumento, pouca coisa sobra. Só o desenrolar sem fim de todos os tipos de reacionarismos.
É como se Luiz Vilela tivesse decidido escrever essa história boba – nem sequer a hipótese do filho de Machado de Assis se desenvolve – apenas para vomitar todos os seus ressentimentos e ranços patriarcais.
E isso é feito, utilizando-se da fórmula mais desgastada. O protagonista diz alguma bobagem e é prontamente ‘corrigido’ por seu assistente, um ex-aluno anacrônico, de 22 anos, supostamente formado em Letras. O jovem Telêmaco – quem se chama Telêmaco hoje em dia? – mostra ao professor qual é a expressão ‘politicamente correta’.
Já deu para perceber que a novela não passa de um pretexto para desfilar todo um rosário de ‘piadas’ sem graça, eivadas de preconceito até a medula, como neste trecho:
É como naquela marchinha de carnaval: ‘tava jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu’... Só que não pode mais cantar assim, professor. E como que é então?, ele quis saber. Agora é assim: tava jogando sinuca, uma afrodescendente mentalmente descompensada me apareceu...”.
Ou neste: “Se o senhor disser por aí ‘mongolóide’, o senhor corre o risco de ser linchado, esquartejado e jogado aos porcos. Ou será que eu deveria dizer ‘suínos’ para não ofender os porcos?...
Não consigo deixar de pensar que Luiz Vilela se vale do personagem para, de fato, colocar em cena o ‘tio do pavê’, num melancólico almoço de domingo. Mas não se trata de evidenciar o ridículo dessas situações e personagens. Antes o contrário, o ‘tio do pavê’ reaça é o alter ego do autor.
Em 105 páginas, Luiz Vilela consegue expressar misoginia, homofobia – “E quer coisa mais triste do que uma bicha velha?” – racismo e etarismo. É um discurso todo reacionário, porque o conservador é antes de tudo um coerente.
As piadas são só uma desculpa para exprimir sua ideologia anacrônica: “é uma moça já meio erada [erado é o gado gordo – Vilela é pecuarista no Triângulo Mineiro], com um rabo de cavalo... De égua, professor, de égua, ou as feministas vão dizer que o senhor é machista."
Aqui eu posso cometer um spoiler, porque não desejo a ninguém o infortúnio dessa leitura. Chegamos ao final do livro e o que acontece? Nada, exceto termos a sorte de ver o tal professor morrer. Não há qualquer conflito, nenhuma reflexão inovadora ou lampejo criativo. Nada.
E eu fico pensando o que levou Luiz Vilela a publicar esse texto tão desprovido de qualidades. Depois de ter escrito a incisiva crítica aos jornais no romance O inferno é aqui mesmo, os lindos contos de seus primeiros livros, o leve e melancólico romance Graça, tão vivamente recomendado por aquela amiga, a surpreendente novela Entre amigos, composta inteiramente de diálogos. O que faz um autor consagrado assumir-se tão decadente?
Não consigo encontrar outra resposta a não ser a sintonia com seu próprio tempo, ou com o pior do seu tempo. O livro foi publicado em 2016, ano do golpe. Seu livreto expõe todo o tipo de perversidade – que parece inofensiva, mas não é – que se tornaria corriqueira no Brasil presidido por um genocida idiota.

Alex Criado

 

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