O que é um miniconto? Bom, pra começar, é óbvio que se trata de um conto pequeno. Portanto, a concisão é fundamental. O miniconto apresenta, por exemplo, uma escassa descrição de tempos, espaços e personagens. Deve, contudo, manter a narratividade, isto é, contar uma história. O miniconto busca a condensação máxima para chegar ao essencial. A chamada minificção também se caracteriza pela fragmentação, pela experimentação linguística, pelo hibridismo de gê nero (crônica, poesia, aforismo?) e pela aproximação à poesia, como vemos no miniconto de Leonardo Sakamoto , aqui neste blog. O mais interessante do miniconto é que ele não mostra tudo, apenas sugere, como o texto de Marcelino Freire postado aqui também. No bom miniconto, há um subtexto. O leitor deve preencher as lacunas. No Brasil, o curitibano Dalton Trevisan é tido como o pioneiro do gênero. Entretanto, a pesquisadora Francilene Cechinel mostra que há uma história omitida da minificção brasileira. Para ela, U...
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O que eu mais gosto nas crônicas de Martha Medeiros é a fluidez, a simplicidade, a leveza de seu texto. Aqui, a partir do nada, ela faz uma reflexão sobre a arte e a vida. Mulher escrevendo enquanto toma chá Sempre fico insegura na hora de intitular o que escrevo. Meus poemas nunca tiveram título. Nos livros, é a última coisa que escolho (em meio a dúvidas infinitas). E os das colunas refletem a minha preguiça: deveria me esforçar mais para atrair a atenção do leitor, mas depoi s de já ter me dedicado o suficiente na elaboração do texto, o título é praticamente um resumo do assunto tratado, sem nenhuma acrobacia literária ou jornalística. Isso explica o fato de eu admirar a simplicidade do título de inúmeras telas expostas nos museus do mundo. São praticamente legendas: Vista de Paris do Apartamento de Theo é o nome do quadro em que Van Gogh mostra os telhados que seu irmão, Theo, vislumbrava todos os dias, ou Campo de Trigo com Cotovia, onde o mesmo Van Gogh, com sua...
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Rota de Colisão Marina Colasanti De quem é esta pele que cobre a minha mão como uma luva? Que vento é este que sopra sem soprar encrespando a sensível superfície? Por fora a alheia casca dentro a polpa e a distância entre as duas que me atropela. Pensei entrar na velhice por inteiro como um barco ou um cavalo. Mas me surpreendo jovem velha e madura ao mesmo tempo. E ainda aprendo a viver enquanto avanço na rota em cujo fim a vida colide com a morte. Marina Colasanti - Rota de Colisão - Rocco, 1993.
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A Casa Cacaso (Antônio Carlos de Brito) Na minha infância quando chovia batia sobre o telhado uma pancada macia a noite vinha de fora e dentro de casa caía meu olho esquerdo dormia enquanto o outro velava havia portas rangendo lá fora o vento miava no fundo da noite a casa parece que navegava meu coração passeava por uma sala sombria por este lado se entrava por este outro se olhava e por nenhum se saía Na minha infância quando chovia batia sobre o meu peito uma suave agonia a noite vinha de longe e dentro da gente caía meu pai que sempre saía numa viagem calada havia vozes chamando na boca da madrugada no fundo da noite a casa parece que despertava assombração que passava no sopro da ventania por este lado se entrava por este outro se olhava e por nenhum se saía Cacaso - Mar de mineiro - 1982
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Maralinga Oswaldo de Camargo De manhã, ainda a cidade escura, meu pai me acordou. Trouxe o meu peniquinho, pediu que eu mijasse depressa e me lavasse ainda mais depressa, que a casa do Dr. era longe e eu não podia atrasar, senão ficava mostrado que a gente não se interessou. Então engoli meu café, peguei o saco com minha roupa, os dois boizinhos de sabugo e, atrás de meu pai, saímos de casa, que ficou solitária dentro da neblina matinal e entre as três mangueiras desfolhadas pe la geada do mês. Não me esqueço que meu pai trouxe o peniquinho, ato desusado, delicadeza de quem tinha desamparos por dentro e muita coisa doendo, por me deixar ir tão pequeno e magrelo ao povoado do Dr., lá servir e tentar ser alguém em Maralinga. Então olhei os sobrados, os terraços, a matriz de São Gonçalo, com sua barriga de azulejo azul, a praça, que os jeremins tentavam atapetar com a floração amarela, após o bravo frio que desrespeitara os jardins e as latinhas com gerânios nas janelas. Olhei o...
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Litterae - um podcast sobre literatura Para quem curte discussões literárias - e também para quem pretende escrever - os podcasts do Litterae são muito interessantes. O programa de rádio é apresentado pelos escritores Anita Deak e Paulo Salvetti . O programa é bem produzido e sempre traz convidados atraentes. As discussões são abrangentes e densas. O problema é a duração, uma hora. Convenhamos que no mundo atual, de tanta agilidade, é difícil ficar sentado ouvindo um áudio durante uma longa hora. Por outro lado, os t emas e a boa condução da dupla de apresentadores fazem valer a pena. Eu, por exemplo, vou ouvindo aos poucos cada podcast. https://www.stitcher.com/podcast/litterae-o-seu-podcast-de-literatura Veja abaixo os temas tratados até hoje: 1- Referências literárias 2- Inspiração x transpiração 3- Livros fáceis x livros difíceis 4- Literatura em quarentena: caos, angústia e o futuro dos textos 5- Construção do personagem 6- Palavra: modos de usar...
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Terapia de casal Gregório Duvivier Consultório de um terapeuta. Ele e ela estão sentados no divã. TERAPEUTA. Acho que o primeiro passo é a gente tentar entender o que causou esta briga. Vocês lembram como começou o estranhamento? ELA. Acho que tudo começou quando ele falou que queria o divórcio TERAPEUTA. Você falou que queria o divórcio? ELE. Falei. Mas antes ela me deu um soco na cara. TERAPEUTA. Você deu um soco na cara dele? ELA. Dei. Mas antes ele falou que eu estava acima do peso. TERAPEUTA. Você falou... ELE. Falei. Mas antes ela me chamou de brocha. ELA. Mas antes ele tinha brochado. ELE. Mas antes a gente estava prestes a transar e ela disse que eu era um desempregado medíocre que tinha bafo de cigarro e gengivite. O terapeuta tenta intervir, mas eles encavalam as respostas. ELA. Mas antes a gente estava prestes a transar e ele me pediu pra xingar ele. ELE. Mas antes a gente não transava há três meses e eu achei que um palavrão podia dar ...
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Leituras da pandemia Divórcio - Ricardo Lísias Finalmente li o livro Divórcio , de Ricardo Lísias . Já tinha ouvido falar muito deste romance, mas confesso que tenho certa resistência em ler aquilo que todos comentam. Aí, surgiu uma promoção e acabei comprando. Não só pela oferta, claro, já gostava do autor. Li seu primeiro livro em 2015, quando preparava um curso de jornalismo cultural. Comecei pelas narrativas curtas de Concentração e outros contos . Foi aí que tomei contato com aquilo que a crítica literária vinha chamando de autoficção. O conceito é impreciso e um tanto dúbio. Dizer que se trata do uso de experiências pessoais no texto de ficção é tão amplo que colocaria boa parte da produção literária nesse balaio. Para o que nos interessa aqui, vou dizer que autoficção é a mistura intencionalmente confusa entre a história do autor e a narrativa construída por ele. No Brasil, vários jovens escritores têm seguido essa linha: Michel Laub, Tatiana Salem Levy, Julián Fuk...
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Leituras da pandemia A Resistência - Julián Fuks Parece um tolo jogo de palavras, mas resisti muito a ler A Resistência , de Julián Fuks . Edilene já tinha comentado algo a respeito do tema: a história do irmão adotivo do autor. Creio que uma reticência dela em relação ao tratamento dado pelo autor criou essa minha ‘demora’ em ler o romance. De qualquer forma, ele veio junto na bagagem e, finalmente, o enfrentei. Julián Fuks foi considerado um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros pela revista l iterária britânica Granta. Sei que temos que ter cuidado com todo tipo de lista, principalmente aquelas que elencam “os melhores”. Fuks também já foi indicado aos principais prêmios literários no Brasil. Prêmios também são questionáveis. Mas, de fato, Julián Fuks é um baita escritor. Lá pelos anos 1980, um colega entrou aborrecido na sala do jornal-laboratório da ECA/USP e disparou: “aqui todo mundo é frustrado!”. Diante do espanto geral, completou: “o que a gente queria m...
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Leituras da Pandemia Minha Primeira Vez - Luiz Ruffato Neste texto, vou comentar o livro de crônicas Minha primeira vez , de Luiz Ruffato . O volume faz parte da linda coleção Arte da Crônica , da Arquipélago Editorial, de Porto Alegre. Coleção da qual comentarei outros títulos mais adiante. Bem, mas antes de falarmos do livro em si, preciso explicar minha relação com este gênero tão brasileiro. É uma das minhas idiossincrasias. Não costumo ler crônica em jornal ou na internet. Nem mesmo de autora de que gosto. Quase nunca. Digo quase porque às vezes alguma amiga querida me enfia uma crônica Whats ou Face abaixo. Mais do que não ler, eu a evito, fujo dela, como se foge daquele conhecido com quem cruzamos constrangidos na rua. Aquela pessoa que conhecemos, mas não temos a intimidade confortável para entabular uma conversa, nem o distanciamento necessário para apenas acenar com a cabeça. Ao não sabermos a reação adequada, cruzamos a rua, fingimos ver uma mensage...
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Leituras da Pandemia O filho de Machado de Assis - Luiz Vilela Ao embarcar para a Espanha, um dos livros que selecionei para nos acompanhar foi um pequeno volume do grande contista Luiz Vilela . No caso, tratava-se da novela O filho de Machado de Assis . Para quem não sabe, a novela é um gênero a meio caminho entre o conto e o romance. É como se fosse um conto distendido, longo, menos sintético. Mas não chega a ter a estrutura elaborada de um romance. Tomei contato com Luiz Vilela no início dos anos 1990, quando uma colega da ECA, hoje professora da UnB, me falou encantada de dois escritores mineiros, Ivan Ângelo e Luiz Vilela. Insistiu em que eu tinha que conhecê-los. A paixão dela era tanta que não tive dúvida. Na primeira oportunidade fui atrás da obra dos dois. De Luiz Vilela, li tudo o que encontrei pela frente, o que significava à época todos os seus livros. E vi que ela tinha razão. Eram contos incisivos, tocantes e surpreendentes. Não à toa, o autor, com só 24 anos,...
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Um miniconto do provocante Marcelino Freire. Um texto duro, cortante, mas muito atual. Curso Superior O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei. O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não passei por que eu não passei por que eu não passei por que fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei. O meu medo é a loira gostosa ficar grávida e eu não sei como a senhora vai receber a loira gostosa lá em casa se a senhora disse um dia que eu devia olhar bem para a minha cara antes de chegar aqui com uma namorada hein mãe não sei. O meu medo também é do pai da loira gostosa e da mãe da loira gostosa e do irmão da loira gostosa no dia em que a loira gostosa me apresentar para a família como o homem da sua vida será que é v...
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O jornalista Leonardo Sakamoto é conhecido por seus artigos de cunho político e por seu ativismo social no combate ao trabalho escravo. Pouca gente conhece sua produção literária. Aqui, um miniconto pungente e cheio de lirismo. Miniconto sem título Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que era dele a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Ao fim de um aguaceiro, ele se refugiava no velho moinho, girava a roda d’água e uma curva colorida se abria no horizonte. Orgulho. Q uem além dela tinha um avô poderoso assim? Até que, em uma tarde sem nuvens, o coração do velho desabou sobre a plantação. Ela, em prantos, correu para o moinho a fim de pintar para ele. Girou, girou, girou, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu se encolheu e chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez Leonardo Sakamoto - Pequenos contos para começar o dia - Expressão Popular, 2012.
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Uma narrativa concisa, certeira e espantosa de um grande jovem escritor. Questão de postura Rodrigo Ciríaco O professor observa o menino no canto da sala, afastado. Sozinho. Suando frio. Esfregando a mão dentro da calça. Estranha. Aproxima-se, com calma. O aluno de cabeça baixa, concentrado. A mão dentro da calça. Esfregando. Não percebe a chegada do professor. Assusta. Coloca de volta, rápido. Sobe o zíper. O professor, meio sem jeito, pergunta: - O que é isso, Lucas? O aluno não vê outra solução. Abaixa o zíper. Mostra o revólver. - Ah! Tudo bem. Pen sei que tivesse fazendo outra coisa. - Ô, que isso. Tá tirando, prussô? Rodrigo Ciríaco – Te pego lá fora – Dsop, 2014.
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Um dos contos mais bonitos - e perturbadores - dessa grande contista, que acaba de completar 97 anos . Venha ver o pôr do sol Lygia Fagundes Telles Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. – Minha querida Raquel. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. – Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. – Jamais, não é? Pensei que vi...